Quando o cardeal Ângelo Roncalli foi eleito
acidentalmente, em 1958, e se tornou o Papa João XIII, o "Papa Bom",
uma camareira de Roma fez algumas perguntas para a filósofa Hannah Arendt, que
lá estava: "Senhora, esse papa era um verdadeiro cristão. Como podia
ser isso? E como aconteceu que um verdadeiro cristão se sentasse no trono de
São Pedro? Ele primeiro não teve de ser indicado bispo, e arcebispo, e cardeal,
até finalmente ser eleito como papa? Ninguém tinha consciência de quem ele
era?"
Bem, a resposta à última das três perguntas da reflexiva camareira parece
ser "Não" - disse Arendt. Ninguém entre os cardeais do conclave
tinha consciência clara de quem era Ângelo Roncalli, até porque ele foi
escolhido para ser um "papa provisório e transitório". Foi eleito por
não haver consenso a respeito dos verdadeiros "papabile" iniciais.
João XXIII foi uma completa surpresa durante seu breve pontificado, de 58
até 63, quando realizou a mais profunda reforma interna e doutrinária da Igreja
em muitos séculos, tornando-a mais popular e, ao mesmo tempo, um pouco mais
moderna. O catolicismo expandiu-se numérica e qualitativamente como nunca sob
esse papa verdadeiramente cristão.
A eleição do Papa Francisco teve algumas diferenças de contexto histórico e os
cardeais sabiam quem ele era e de onde vinha. Foram buscar um papa do
"fim-do-mundo" - do Terceiro Mundo -, como ele mesmo
assinalou ao passar de arcebispo Mario Jorge Bergoglio a 266° pontífice da
Igreja Católica, primeiro nascido em continente americano, primeiro não-europeu
em mais de 1200 anos e o primeiro papa jesuíta.
A profunda crise atual por que passa a Igreja, que vai de escândalos
financeiros no Banco do Vaticano até os casos notórios de pedofilia em várias
paróquias do mundo todo, passando pela ascensão das rivais denominações
pentecostais, levou o colégio de cardeais a correr um risco calculado de
oferecer o nome de alguém bem diferente do antecessor que renunciou, Bento XVI,
o sisudo e dogmático cardeal alemão Joseph Aloisius Ratzinger.
Em quê o Papa Francisco é diferente? Por que a burocracia da Igreja correu um
risco ao escolhê-lo? As respostas não são fáceis, mas estão evidentes hoje para
todos as diferenças, a começar pela escolha do seu nome, inspirada na frase que
lhe disse seu amigo brasileiro, o cardeal d. Claudio Hummes, ao cumprimentá-lo
pela eleição : "Não se esqueça dos pobres". Ele não tem esquecido e o
estilo de vida mais franciscano que adotou revela sua disposição de colocar a
Igreja menos ao lado dos ricos e potentados, como esteve por séculos. Depois do
interregno ultra-conservador dos papas João Paulo II e Bento XVI, esse
jesuíta simpático e amante do futebol é uma lufada de ar fresco.
As instituições e suas burocracias tendem a escolher como seus representantes e
líderes os mais fiéis aos seus interesses e valores administrativos. Muitas
vezes, os premiados são os mais submissos às regras políticas da instituição e
os mais medíocres. Quase todas as instituições e organizações conhecidas
funcionam assim. Daí, a surpresa da camareira romana e da filósofa Hannah
Arendt diante da escolha de um "verdadeiro cristão", que poderia
levar a Igreja a resgatar princípios originais da instituição e,portanto, a
revolucioná-la.
Essa é outra característica de um "grupo de dependência" como a Igreja,
isto é, um grupo que elege um Messias, uma doutrina e a disposição fideísta
para seguir um mestre e seus dogmas. Quando cresce e se distancia do Mestre
original, esquece suas origens e se prende a rituais e regras rotineiras para
manter-se sólida. O resgate e a evocação da origem costumam ser subversivos.
Daí a surpresa diante da evocação de Francisco de Assis, que contrasta muito
com o luxo do trono ocupado por Bento XVI, mais a tolerância da burocracia
católica com o novo Papa e com a mudança de rumos que pode imprimir em seu
pontificado.
A resistência à sua presença por parte dos conservadores do mundo todo
assemelha-se muito à que sofreu João XXIII, acusado pela direita de
"bonzinho com o comunismo" e até mesmo de "marxista". Agora
, a revista conservadora "The Economist" acusou-o de "seguir
Lênin", o líder soviético que escreveu o livro "Imperialismo, etapa
superior do capitalismo", em que assinala a tendência monopolista e
concentradora de renda do capitalismo moderno. O Papa apontou a concentração de
renda capitalista e os monopólios, e os criticou por aumentarem a desigualdade
e a pobreza, o que tem sido apontado até mesmo por economistas
insuspeitos de "marxismo", como o norte-americano Paul Krugman
e o francês Thomas Piketty. Somente o que chamo de a "burrice
conservadora" ou a ma fé poderiam levar à conclusão de que ele seria
"leninista".
Sua frase sobre a existência de cristãos gays , dizendo "quem sou eu para
condenar um homossexual que procura espiritualmente Cristo?", tocou em
outro tema polêmico em que tem sido fustigado pela estupidez conservadora. Sua
atitude, porém, começa a se difundir pela corpo da própria Igreja e vários
católicos relatam nas redes sociais que já presenciaram padres falando em
defesa das uniões homoafetivas do púlpito em suas missas.
Ao mesmo tempo, o Papa acaba de excomungar os membros da Máfia, responsáveis
pelo assassinato de uma criança de três anos na Sicília, e também expulsou das
funções eclesiásticas o ex-núncio da República Dominicana, o polonês Jozef Wesolowski,
condenado por pedofilia comprovada naquele país. As suas atitudes firmes fazem
crer que o Papa continuará a condenar o crime, sobretudo quando cometido pelo
próprios membros da Igreja, mas não ditará regras sobre as condutas humanas em
geral. Sob seu pontificado, espera-se que a Igreja interfira menos na vida
privada das pessoas e seja mais tolerante em seus juízos morais.
No início, o Papa Francisco era um enigma. Existiam até acusações apócrifas de
que teria sido leniente com a Ditadura Militar argentina quando era bispo.
Depois descobriu-se que foram feitas até montagens fotográficas maldosas, dele
ao lado do ex-ditador Jorge Videla, de quem "seria o confessor". Nada
disso se comprovou. Sabe-se apenas que ele negociou a preservação dos Direitos
Humanos naquele país, o que o fazia dialogar com freqüência com os ditadores
dos anos 70 e inicio dos 80.
Francisco vem humanizando o papado e é possível esperar que promova um gradual
"aggiornamento" dos cânones da Igreja, como fez João XXIII. Tudo para
evitar a decadência da instituição. É uma política mais inteligente,
para dizer o mínimo, do que a do intelectual sofisticado Bento XVI.
Se assim for, não é preciso ser católico e nem mesmo acreditar piamente,
para dizermos como os cristãos: "Deus o proteja". Vai precisar.
* Reinaldo Lobo é psicanalista e articulista. Tem um blog
: imaginarioradical.blogspot.com e uma página pública no Facebook:
www.facebook.com/reinaldolobopsi
Nenhum comentário:
Postar um comentário