Em meados de 1989, o então presidente da Petrobras,
Carlos Sant’Anna, chamou um grupo de funcionários para uma reunião que começou
com o seguinte discurso: ‘Precisamos de uma estratégia para proteger a
Petrobras’. E continuou: ‘Não temos mais o general daqui para resolver os
problemas com o general de lá’.
Sant’Anna referia-se à relação direta entre os militares que comandaram o país
após o golpe de 1964 e os presidentes da estatal, muitos dos quais também foram
militares. Até aquele momento, a Petrobras tinha sido presidida por militares
em 25 dos 35 anos de sua existência. E a maioria dos presidentes civis que
comandaram a petroleira até ali era altamente identificada com a cultura
militar.
Sant’Anna era exceção. Formado em geografia e história, começou a trabalhar na
Petrobras como temporário e, em 1958, foi efetivado ao passar num concurso
público. Galgou cargos até chegar à presidência em abril de 1989. Naquele ano,
a situação do país não era de ruptura, como em 1964, mas o cenário mostrava-se
altamente desafiador.
O Brasil vivia um período de efervescência política e de grave crise econômica.
O presidente José Sarney finalizava seu mandato e, depois de 25 anos, os
brasileiros se preparavam para votar novamente para presidente da República. Na
economia, o país beirava o caos. A inflação fechou 1989 em inacreditáveis 1
972%. Para a Petrobras, a explosão dos preços e a desvalorização cambial eram
ainda mais nocivas.
O governo impedia a estatal de reajustar o preço dos combustíveis, numa
tentativa inútil de segurar a inflação. A empresa perdia 100 milhões de dólares
por mês devido à defasagem no preço de seus produtos.
Depois de ter registrado em balanço lucros acima do bilhão de dólares (em 1986
e 1988), a Petrobras apresentou em 1989 um resultado que se limitava a 160
milhões, muito pouco para uma gigante com mais de 80 000 funcionários
na folha de pagamentos. Nesse ambiente, o que era um dos cargos mais cobiçados do Brasil, a presidência
da Petrobras, transformou-se num desafio não tão atraente.
Nos cinco anos de governo Sarney, a empresa teve cinco presidentes, uma
rotatividade inédita. Sant’Anna temia um futuro pouco venturoso para a estatal,
e ele não estava sozinho. Os funcionários com mais tempo de empresa,
principalmente os que ocupavam cargo de gestão, já tinham percebido que a
democratização aumentaria a exposição da empresa ao uso político.
‘Os políticos civis vieram com um apetite danado para cima da Petrobras’, disse
Roberto Villa, diretor industrial da Petrobras na época. O primeiro grande
escândalo de corrupção envolvendo a Petrobras veio a público no final de 1988
por meio de uma reportagem da jornalista Suely Caldas, do jornal O Estado de S.
Paulo.
A reportagem revelou que dirigentes de três bancos privados — Bradesco, BCN e
Banco Geral do Comércio — haviam procurado Armando Guedes Coelho, então
presidente da empresa, para fazer uma denúncia. Eles diziam que um funcionário
da BR Distribuidora estava por trás de um esquema montado para saquear a
estatal em conluio com instituições financeiras que aceitassem operar a fraude.
O golpe se daria no serviço de cobrança realizado por diversos bancos
contratados pela BR e consistia em receber o pagamento das duplicatas de
inúmeros postos de combustíveis que compravam produtos da BR. No trâmite
normal, os bancos eram remunerados com um percentual de cada cobrança realizada
em nome da BR.
O banco que ‘colaborasse’ no esquema seria privilegiado com uma fatia maior das
cobranças da companhia. Para isso, a instituição financeira teria de fraudar a
data de recebimento dos pagamentos, aplicar o dinheiro — sem que a BR soubesse
— e dividir os ganhos da aplicação com o proponente do negócio ilícito. Num
período de inflação alta, os ganhos seriam altos.
A pessoa que visitara os bancos propondo o esquema garantia ter o aval de
executivos do alto escalão da subsidiária. A instituição financeira que não
‘colaborasse’ trabalharia menos ou não trabalharia para a empresa. Ao receber a
denúncia, o presidente da Petrobras, Armando Coelho, afastou toda a direção da
BR e abriu uma investigação interna.
A apuração, realizada em dez dias, confirmou que bancos pouco expressivos,
escolhidos sem obedecer aos critérios normalmente utilizados pela estatal,
vinham recebendo depósitos milionários em razão das cobranças feitas para a BR.
A pessoa que visitava os bancos era Eid Mansur, que não trabalhava nem lá nem
na Petrobras.
Entretanto, Mansur dizia ser diretamente ligado a Geraldo Magela de Oliveira e
Geraldo Nóbrega, dois assistentes do presidente da BR, o general Albérico
Barroso Alves, o Barrosinho, como era conhecido nas Forças Armadas. O problema
é que o general Barroso era amigo e compadre do presidente José Sarney.
Foi ele que o nomeou como diretor industrial da Petrobras e presidente da
subsidiária BR (os diretores da petroleira costumavam acumular a presidência de
uma das subsidiárias do grupo). Ao final, a comissão interna que investigou o
caso concluiu que Eid Mansur fazia parte de uma quadrilha formada por Magela e
Nóbrega, ambos levados para a BR Distribuidora havia poucos meses por Barroso.
Depois que a história foi parar no jornal, o Legislativo criou uma Comissão
Parlamentar de Inquérito. Em depoimento à CPI, Magela, Nóbrega e o general
Barroso negaram conhecer Mansur. No dia seguinte aos depoimentos na CPI, porém,
a jornalista Suely Caldas recebeu um telefonema de um funcionário da estatal
que tinha um vídeo que desmentia a versão dos três envolvidos.
Nas imagens captadas numa festa da BR, o general Barroso e seus subordinados
Magela e Nóbrega brindavam alegremente com taças de champanhe com Mansur. Uma
nova reportagem estampou uma sequência de fotos que mostravam Mansur se
dirigindo a Barroso, enquanto apoiava a mão esquerda nas costas do general e
apontava para Magela com a mão direita.
Nóbrega, o quarto elemento da foto, observava ao fundo. A reportagem demoliu o
falso testemunho dos três. Os dois assessores de Barroso foram demitidos, mas
Armando Coelho não conseguiu afastar o general presidente da BR. Ao telefonar
para Sarney e pedir a ele que demitisse Barroso, Coelho ouviu uma resposta
desconcertante do presidente.
‘Eu não demito amigos’, teria dito Sarney ao então presidente da Petrobras.
Diante do argumento, Coelho entregou o cargo. Alegou que não podia trabalhar
com um diretor em quem não confiava, e foi contratado por uma fábrica de
catalisadores que pertencia à Petrobras. Depois, aceitou o convite para dirigir
a Suzano Petroquímica.
Barroso permaneceu ainda algum tempo na diretoria da Petrobras e na presidência
da BR, mas foi remanejado para a presidência da Petrofértil, subsidiária de
fertilizantes do grupo, onde ficou por poucos meses, logo deixando a empresa de
vez. Mais tarde, descobriu-se que Coelho teve total apoio de Ernesto Geisel,
ex-presidente da República e ex-presidente da Petrobras, para realizar a
investigação.
Geisel, que ainda contava com alto prestígio político, convenceu os militares a
não proteger o general Barroso. Atualmente, Coelho não aceita falar sobre o
diálogo que teve com Sarney. Mas também não desmente a história contada por
dois auxiliares que eram muito próximos a ele na época.
Ambos confirmam que ficaram estupefatos com a justificativa do presidente da
República, confidenciada pelo chefe no calor dos acontecimentos. Ao comunicar
sua saída da empresa aos diretores e gerentes no auditório da Petrobras, Coelho
foi aplaudido de pé por quase 5 minutos.
Mais do que uma homenagem ao presidente que deixava o cargo, as palmas dos
funcionários eram um protesto contra o ataque à empresa e a saída de um
presidente que não aceitou acobertar a corrupção.
Mais interferências
Depois do escândalo, o fato é que em 1989 a Petrobras não tinha um plano
estratégico. E era o que Carlos Sant’An- na pretendia mudar. Por quatro meses,
a equipe incumbida de elaborar o plano discutiu cenários econômicos e
políticos, nacionais e internacionais, com 40 executivos da companhia.
Ao final, chegaram à conclusão de que, nos novos tempos de competição global
que se anunciavam, a raiz nacionalista da empresa deveria ser substituída por
eficiência e competitividade perante as maiores e melhores petroleiras do
mundo. Só assim as empresas e os países prosperariam. Essa foi uma das
principais mensagens do plano.
Coordenado pelo engenheiro José Paulo Silveira, superintendente da área de
planejamento da estatal, o trabalho foi finalizado em 15 de dezembro de 1989. O
plano foi aprovado pelo conselho da Petrobras em janeiro do ano seguinte e
divulgado por Sant’Anna aos gerentes num auditório lotado. Quase dois meses
depois, no domingo de 4 de fevereiro de 1990, o plano foi parar no jornal O
Estado de S. Paulo.
O título era ‘Petrobras muda para os anos 1990’. A reportagem deixou o
presidente eleito, Fernando Collor, furioso. Ele ainda não havia tomado posse,
o que aconteceria em 15 de março.
Em sua interpretação, o tal plano estratégico era uma forma de resistência ao
seu governo. Assim que assumiu, destituiu não só o presidente e os diretores
como também metade do grupo de gestores logo abaixo deles. Sant’Anna aproveitou
para se aposentar. E o que seria o primeiro plano estratégico da Petrobras
acabou engavetado.”
Por Roberta Paduan
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